Arquivo | maio, 2010

UM CONTO SOBRE NINGUÉM

28 maio

Estamos chegando nos instantes finais de nós mesmos. Há medo, ansiedade e saída nesse labirinto. A lua caminha para o descanso. Na sala toca Raul. Pinhões na panela. E frio. O mundo, longe daqui, seria bonito se eu pudesse estar. Te amar vira uma disputa entre dois complacentes quando é você quem me obriga a te olhar desse jeito estranho. Um jeito que nem é mais eu. Não sei se você já notou, mas faz tempo que meus olhos não conseguem mais se segurar dentro dos teus. É tudo sobre estarmos no fim do caminho e termos nos dado conta, somente agora, de que estávamos no caminho errado. Tudo sempre é tarde demais. Afiaram-se nossas facas quando um de nós não esteve aqui.
Escreva cem vezes “eu não devo sentir”. Depois, com cuidado, arranque do peito o diamante de lágrimas que, silencioso, corroeu todos tecidos que você esqueceu de cuidar.
Recuse-se à mudar e quebre-se ao meio. Estoure uma veia. Ou simplesmente ouse torcer um osso do próprio pé.

LUA CHEIA PERIGEU. KELLY, OLHE PARA AS ESTRELAS!!!

27 maio

No canto da tela está escrito 18:11 e talvez o tempo tenha mesmo parado. Há pânico sempre que ligo meu computador. Ele pode se recusar a existir. Talvez eu nunca mais compre outro, depois que esse aqui morrer. Tem sido libertador criar sem canetas nem teclas, criando possibilidades de fuga para um mundo que só existe entre nós. Passo o dia sentado, vagando os olhos pela sala, de vez em quando encontrando os teus. Minha boca é só o ponta dos dedos de outra pessoa. Entrego-me cada vez mais ao trabalho tentando chegar na praia. Nesse processo de imersão, nunca desperdiço idéias alheias. Deve ser por isso, por valorizar demais a opinião alheia, que eu não consigo mais sair todos os dias. Os ouvidos, nessas épocas de criação e de lua cheia, ficam mais abertos do que o normal e os ruídos machucam mais. Preciso de munição. Tampões de ouvido e colchões de ar. Em pouco tempo a lua cheia atingirá seu ápice anual. Essa é a lua mais importante do ano, e é muito louco, hoje de manhã o meu pai me telefonar para dizer que está chegando à noite na minha casa em São Paulo. A lua no ápice é meu pai atravessando o céu para chegar até mim. A cada dia que passa o tempo só vai diminuindo um pouco mais. É só a sensação real de envelhecer. Ter menos tempo de vida não é uma idéia muito fácil de suportar. Principalmente quando a lua aproxima-se tão perigosamente de nós. Queria estar em um lugar bonito, mas estou em São Paulo dentro de um apartamento com vista para o nada. Quero subir no topo de algum hotel e ficar só vendo a lua surgindo dentro da plantação de prédios. Ainda resta alguma beleza nas grandes cidades. Postdahmer Plaz às cinco da tarde de uma terça-feira chuvosa. NBE às tres da manhã de uma quarta-feira de nevasca. Obberholz Café, quatro horas da tarde, noite caindo sobre Berlim. Trut, dez e meia da noite, cinco graus de calor. Antes de o conhecer, Moritz era só o nome de um cara que me ensinou a fingir. Lágrimas de crocodilo brotavam dos nossos olhos quando ameaçávamos nunca mais nos separar. Eles fugiam dos meus. Se perdiam do outro lado do vidro, buscavam qualquer atenção que não a minha. Segurava forte a mão, sem medo de ficar doente. Pessoas morriam de tristeza a nossa volta. E era bom. Higiênico até, talvez. A natureza morria um pouco, e natural que houvessem suicídios. Como uma estranha epidemia de gripe. Lamentava-se na mesa, antes de decidir o prato do dia. Esperávamos do lado de fora ele pegar mais um coat de cerveja no caminho de volta para casa. Ele bebia demais. Comentávamos entre nós, e secretamente desejávamos beber até cair. Depois as mãos voltavam aos bolsos. As cervejas tropeçavam as pernas, a ponta dos dedos congelavam as chaves, e tudo em volta só servia para me lembrar que eu estava mesmo sozinho. E que correria perigo, caso desejasse ser quem eu era.
Basta que o mundo e as coisas aconteçam pela primeira vez para que o tempo volte a correr no seu tempo normal. Tudo é só uma questão de ser apenas e somente uma vez, pela primeira vez, sempre.

SÓ EXISTE MEDO NOS HORÓSCOPOS PRECISOS DEMAIS

25 maio

Há dias em que torna-se só um pouco mais complicado conhecer os mesmos erros de sempre, e continuar aceitando. Nos dias em que acordo assim, meio torto, há coceira na ponta dos dedos pedindo para que eu faça alguma coisa. A lua está enchendo e a lua de amanhã não vai ser a lua mais importante desse ano. Amanhã é quase certo que eu ainda estarei aqui. Nesse mesmo apartamento de onde mal se consegue ver o céu. Tentando me encaixar em um eu que talvez não exista mais. É só que às vezes fica um pouco mais complicado suportar o pesinho do não desistir.

Se existisse mesmo tanta vida lá fora, eu juro que eu iria.

LATE NIGHT AT LEILA’S PLACE

21 maio

Essa é a primeira madrugada que avanço depois de muitos dias dormindo cedo. Tenho mudado meus hábitos. Por nada não. Só pra ver como que fica diferente. Apago números da agenda. Esqueço caminhos que sempre fiz. Os dias tem sido cheios, e não há quase nada para reclamar. As ruas ficam tomadas de um silêncio que eu não lembrava mais como era nessa hora da noite. De vez em quando uma motocicleta. Depois nada. Outra vez.

Estou voltando a discos que há muito tempo não ouvia. As letras deveriam ser, mas não são mais as mesmas. Há profusão nas crianças que as meninas que eram meninas quando eu era menino, insistiram em despejar no mundo agora, quinze anos depois da primeira vez. Em quase todas as casas, de quase todos meus amigos, há um pequenino para distrair as madrugadas de sexta-feira. Meus amigos são tranqüilos com seus filhos. Sobem devagar as escadas quando um grito agudo brota no silêncio do segundo andar. Se o pequenino estiver insone, desce-se com ele nos braços e senta-se de volta na roda. As espirais de fumaça deixam de existir. Os sorrisos acontecem mutuamente e todos se permitem apenas relaxar. O bebê ensaia passos desencontrados entre braços abertos para voltar a cair no colo da mãe. A pele contra o tecido sintético da saia indiana. Os cabelos engolindo dedos. A noite pesando as pálpebras. Saudade de quando eu era um deles.

JUST A GOTHIC SHORT CLASSIC

20 maio

Hoje, no jantar, você apareceu do meu lado. Um calafrio percorreu a espinha. Quando tentei olhar para o seu rosto, você não estava mais lá.

Toda a vez que olho para o céu me pergunto em que lugar embaixo dele você estaria agora se ainda estivesse aqui. Se a cidade, vista do alto, for apenas um acolchoado de existências, talvez cair não doa tanto assim.

No meio da madrugada traço rotas para tentar fugir de onde estou. Tiro as chaves de todas as portas e escondo-as de mim mesmo. Para facilitar a saída, há escuridão no teto. Você respira, mas não. A luz verde do relógio trocando os minutos indica que noite está entrando, pouco a pouco, na confortável velocidade de cruzeiro.

Já faz tempo que parou de fazer efeito. Talvez nunca mais faça. Meus dedos coçam entre as pernas. As orelhas esquentam, alternadamente, cada um dos lados do travesseiro. Ele ainda respira. O cadáver de um homem vivo.

O QUARTO MÁGICO DO TIO MALUCO

19 maio

Na sala roda Lonesome Me, do After the Gold Rush, e eu ainda sinto que alguma coisa está faltando. Passamos o dia trabalhando e eu sinto que alguma coisa ainda está faltando. Se eu soubesse o que é, talvez seria mais fácil continuar vivendo um dia depois do outro. É só um tipo estranho de vazio, como se tudo estivesse passando rápido demais. Meus pais. Meus avós. Meus dias. Meus anos. Minha vida.

Sempre que volto para casa o meu sobrinho está um pouco mais inteligente e nós nos entendemos um pouco mais, e isso é bom. No meio de tanta atenção, eu sou só aquele cara que não se importa com quase nada. Se ele está perto de mim, eu sorrio e nós conversamos. Não sou daqueles adultos macacos que ficam cobrando sorrisos, abraços, presenças. Nos entendemos quando nossos olhos se encontram ou quando ele entra sorrateiro no meu quarto sempre que escuta meus dedos deslizando desengonçados pelas cordas do violão. É um tipo despreocupado de convivência que criamos entre nós. Quando ele olha para mim, eu sou a memória que um dia ele terá da própria infância. O quarto dos fundos com um elefante azul pintado na parede. A cortina escurecendo a tarde. O cheiro estranho das coisas que um dia ele vai entender. Tudo um dia será lembrança e nem eu, nem ele, estaremos mais aqui.

Sinto saudade do meu violão que eu não sei onde está e cada vez eu entendo mais as pessoas que tem mais de um violão espalhado pela casa. Minha irmã tem quatro violas, duas guitarras e dos pianos. E ela é só a mãe do meu sobrinho que mora em campo bom.

Chove do outro lado da rua. As roupas não vao secar e tudo vai ter um cheiro de mofo, umidade, descuido. Meus cabelos crescem e eu queria nunca mais cortá-los. Meus dedos perdem a prática e todas as músicas que eu queria saber tocar esperam por mim. Estamos todos em um estranho, angustiante estado de stand by coletivo. Há bebida ao alcance dos meus dedos, mas hoje não. Ha tristeza ao alcance dos meus sentimentos, mas hoje eu queria que não. Lágrimas represam, mas não existe nenhum motivo concreto para ser. Quando um dia de trabalho chega ao fim e é como se nada importasse, o que sobra somos nós dois, vagando pela casa, a procura de alguma coisa que signifique a nossa existência. Qualquer coisa alem dos nossos filmes, dos nossos livros, das nossas musicas que o meu violão, perdido em algum lugar do sul do país, deveria estar tocando aqui, no meu colo.

As roupas mofam no varal, e não há nada que possa ser feito.

HÁ PRECISÃO NOS AVIÕES SOBRE O PASSO DO CORVO.

17 maio

O que eu mais queria ter feito nessa última ida ao Sul era tocar violão na ceva 20. Mas não deu. Assim como não deu para fazer quase nada do que eu havia planejado fazer. Passei a maior parte do tempo trabalhando. Aprendi a tocar Seasons in the Sun, Lived in Bars e It Ain’t me Babe. Toquei para a Fran, no quarto mágico dos fundos, e foi bonito tentar cantar para a minha melhor amiga de todos os tempos. No meio da temporada gaúcha, um convite irrecusável me trouxe de volta à São Paulo. Be carefull of what you whish, é meu mantra. Desejei conhecer o autor do meu livro preferido e, no meio da temporada gaúcha, recebi um convite para conhecer esse autor. E vim para São Paulo com a mala dividida entre roupas, saudades do que não vivi e vontade de conhecer o desconhecido.
No ultimo dia fui andar de carro pelo Passo do Corvo. O Passo do Corvo é um pequeno povoado feito de plantações no interior de Arroio do Meio. Ultimamente tenho preferido o Passo do Corvo à Ceva 20, no bairro de Carneiros em Lajeado. Tenho preferido tudo, menos Lajeado. O passo do corvo é mais legítimo e menos ameaçado pelos loteamentos que assolam a cidade onde meus pais ainda moram. Foi lá que filmamos a cena em que Julian desaparece dentro do milharal, à noite, e é sempre triste e bonito voltar àquele lugar. Escolhi ver o por do sol na parte mais bonita do vilarejo: o cemitério. Descobri que quero ser enterrado lá, vendo a cidade de longe. A imagem apocalíptica do curtume ao fundo, depois das plantações. O sol caindo atrás dos morros. O avião que sempre cruza o céu às seis e meia da tarde. A primeira coisa que preciso fazer assim que voltar ao sul é me associar na comunidade que administra aquele cemitério. Não sei se é uma comunidade católica ou protestante, não importa qual seja, mas quero que meu tumulo seja lá. Se alguém for me visitar, vai ver o por do sol mais bonito. Um presente para os que lembrarem de mim depois que eu não estiver mais aqui.
Hoje saí para caminhar pela vila madalena. Estava estressado e o ar da noite sempre consegue me deixar mais calmo. Respirei cruzando as praças escuras aqui do lado de casa sem medo de ser assaltado. Vi um avião cruzando o céu, ganhando altura e velocidade à medida que se afastava de São Paulo. E desejei com todas as forças estar dentro dele.
Eu só não queria ter esquecido meu violão dentro do ônibus que me levou de lajeado até o aeroporto salgado filho.
Saudade de mim quando posso estar sozinho é o mínimo que posso sentir agora que estou longe. Estar em São Paulo é sempre estar longe de mim. Assim como estar em qualquer lugar. Uma sensação angustiante de não pertencer a lugar algum tem afligido meu peito e eu tenho um pouco de medo de sentir isso para sempre.

É SÓ UM FOTOLOGUE SOBRE A VIDA COMUM

10 maio

Sempre tem a hora Cat Power do dia. A hora em que tudo parece fazer sentido outra vez. Eu queria só morar em um mundo onde as coisas fizessem um pouco mais de sentido mais vezes.

A filha da empregada está vendo a Sessão da Tarde na sala. Não sei quantos anos ela tem, mas eu lembro dela desde que ela era uma menina pequena do tamanho do meu filho hoje. Hoje ela é uma adolescente que me apelidou de “famoso” em um tom irônico. Meu irmão sempre fica meio mal quando ela está aqui porque ele tem medo que ela descubra que o cheiro estranho no quarto dele é cheiro de você sabe o quê. Ele podia só tentar disfarçar. Não precisava fumar até quando a filha da empregada está em casa. Eu perguntei para ele se, quando o meu filho ficar maior, ele vai continuar fumando dentro de casa. “Prometo que vou fumar na janela” ele disse para mim “e teu filho tem que saber quem é o tio dele. Desde logo!”.

Sábado de manhã bem cedo acordei para levar o pequeno na apresentação do dia das mães. Na hora ele não quis se apresentar e eu fiquei puto com ele porque, não fosse a apresentação, teríamos ido a Lajeado ainda na sexta e eu teria visto meu irmão um pouco antes. Quando chegamos na casa dos meus pais o guri correu até a porta do banheiro e ficou parado, escutando meu irmão mijar. Não perguntei o que ele queria, porque ainda estávamos brigados, mas prestei atenção ao que acontecia entre os dois quando eu não estava por perto.

Ele chamou meu irmão e meu irmão respondeu do lado de dentro, com uma voz de monstro, “quem é que tá aí?”. Saiu do banheiro sem lavar as mãos e o pequeno pulou na cama dele. Eles me viram na porta. Contei ao meu irmão, na frente do pequeno, sobre ele não ter se apresentado na escola. “Eles iam te pagar pra se apresentar?” perguntou ele para o meu filho que, surpreso, fez que “não” com a cabeça. Abriu a porta do guarda roupa e tirou duas caixas de Havanettes de dentro do armário, e as jogou no colo do pequeno. Os olhos do guri brilharam e ele logo procurou pelos meus para dividir a alegria pelo doce preferido que comemos na cama. Meu irmão não reclamou o meu tênis sobre o lençol. Nem eu lembrei de obrigar o meu filho a agradecer o presente do tio. “Trouxe o violão?”, perguntei para ele, e ele disse que não. Senti raiva.

Meu irmão conserva no meu filho um dos primeiros desejos por algo que não existe perto. Como Havanettes, que é difícil de encontrar em Lajeado. Eu deveria achar ruim, mas tenho achado legal o meu irmão ser o seu referencial de doce. Eu queria saber onde termina eu e onde começa ele, mas isso é uma coisa difícil e física demais para se conseguir explicar.

Combinamos de passar a noite tocando violão. Ele tem dois violões aqui na casa dos meus pais, mas faltam cordas nos dois. Desconfiei que ele talvez estivesse com vergonha de cantar e ele disse que a voz dele era horrível. A voz dele é horrível sim, mas eu não queria que ele acreditasse nisso. De tarde fomos ao centro, na multisom, comprar as cordas para os violões. Havia disposição em nós. Se a cidade tivesse nos convidado, teríamos ido a pé sob o sol do outono de maio, mas preferimos perder todo o tempo do mundo procurando um lugar para estacionar. Quase nos atropelaram quando atravessamos a Bento sobre a faixa de segurança. Tamanha empolgação, quase ousamos esquecer a cidade onde estávamos.

PRESS RELEASE SENTIMENTAL SOBRE A ESTRÉIA EM LAJEADO – dói, mas é só uma picadinha (nelo Johann)

7 maio

Dentro dos meus ouvidos toca Neil Young e Neil Young é um cara bem difícil de tocar.

Ontem comecei a entrar na obsessão “Seasons in the Sun”. Cat Stevens é fácil de tocar, para quem está começando. Nirvanna também. Não foi a toa que o Kobain pegou nas baquetas para tocar essa canção. Ela é fácil. Quase boba. Mas tem uma das letras mais tristes.

Ontem foi a sessão do filme aqui em lajeado na abertura do Festival do Livro, um evento bem bacana capitaneado pelo Thiago, um guri que se pilha em vender livro nessa cidade que consome moda surf e sertanejo universitário. Na abertura de ontem não tinha muita gente. O secretário de Cultura não foi visto no evento. Eu não o vi. Então não sei se foi. Não deve ter ido. Foi? Porque iria?

A secretária de Educação, em nome da prefeita, também ausente, desejou sucesso ao Festival do Livro e disse que ela, a própria secretária, só estava lá, prestigiando o evento, pois era forte o bastante para vencer uma pesada enxaqueca. Eu, da platéia, achei estranho o jeito como ela largou a pesada bolsa de couro sobre a pequena mesa onde meus livros estavam expostos. Talvez ela não tenha visto. Talvez ninguém mais tenha visto. Nem ela. Talvez ela não tenha visto os meus livros arrumados sobre a mesa em cima do palco sufocando sob a pesada bolsa. Talvez só fosse eu que estava um pouco preocupado com os meus livros e não queria uma bolsa em cima deles. Escritores tem um apego um pouco diferente à sua obra. Quando meu nome foi citado, fui sutilmente rebatizado para Ismael Capenele pelo diretor da primeira escola de onde fugi.

O diretor, um homem inteligente, trocou algumas palavras comigo na sessão de autógrafos para ninguém. Pediu uma dedicatória para a Biblioteca da Escola. Perguntei se a escola tinha o meu primeiro livro “Musica para Quando as Luzes se Apagam”. Ele disse que sim, o que muito me surpreendeu pois eu acho esse livro um pouco livre demais para adolescentes em segundo grau de cidades pequenas. Ele disse que o livro era liberado com um “certo controle”, mas, ainda assim, liberado. Achei bom. Perguntei se o mural pintado no salão onde aconteciam os cultos de domingo continuavam lá. ele disse que sim, que era de um pintor alemão. Revelei que aquele mural era parte da minha infância. Os cultos luteranos aconteciam no salão de festas da escola e eu me perdia na pintura de camponeses alemães em um campo alpino. Todos felizes em uma paisagem natural. Era por aqueles campos que eu passeava enquanto o pastor falava e é bom saber que o painel continua lá e que o diretor me convidou para visitar a escola. pedaços da nossa história vão morrendo tão depressa. A casa da minha avó vai perdendo as cores na rua de baixo e eu vou sentindo cada vez menos vontade de ir até lá. deve ser só porque o dia está cinza. E porque nos meus ouvidos agora toca o middle seasons, do nelo.

Quando o filme começou, achei bem estranha a voz do Henrique. Ele parecia um patinho falando rápido. Não entendi muito bem o que acontecia. Um repórter insistia em fotografar a sala com o flash de sua câmera e eu fui lá explicar que aquilo atrapalhava a projeção e ele parou, bastante solícito e educado.

A Tuane, do meu lado, comentou que o som estava estranho. Não era impressão, mas Henrique estava com voz de patinho. Para não me estressar, saí da sala. Encontrei Fran e Bocão brincando com a Sara e fiquei lá com eles. é sempre bonito ver jovens pais plenamente satisfeitos com a cria. O Molde apareceu atrasado e eu achei melhor ele nem ter entrado na sessão. Comi no Planeta Terra e me disseram que a dona do restaurante, a “Mãe dos Duendes”, estava no cinema vendo o filme. Medo. Ou coitada. A voz distorcida do Henrique ecoou nos meus ouvidos e eu me arrepiei.

Depois de um tempo subi de volta, esperando o filme terminar para começar a sessão de autógrafos. Tuane, do lado de fora, estava apreensiva. Dizia que o filme parecia estar passando rápido demais. Talvez fosse apenas uma intuição, mas não conseguira permanecer na sala de cinema dado o mal estar que sentia em relação à projeção. “Estamos todos com as vozes finas”, me disse ela. Como Tuane é muito sensível e percebe coisas que eu não percebo, voltamos à sala de cinema. Quatro amigos que não puderam entrar pq estavam atrasados e não tinham convites, seguiam pela feira olhando os livros. Achei melhor.

Dentro da sala Nelo cantava “Pigeon Suicide Squad” e eu comentei com Tuane que Nelo estava fanho. “Você não sabe o que foi Bob Dylan. Parecia um pintinho cantando Mr Tambourine Man!” – me disse Tuane, assustada.
Perguntei ao projecionista se o filme estava passando mais rápido do que o normal, e demorou um tempo até ele ver que tanto eu quanto Tuane éramos exímios conhecedores da sétima arte. Então ele revelou que a sala 1 , onde passava o filme, era “muito pior que a sala dois! Se fosse na sala dois isso não aconteceria!” Sim, o projetor estava mesmo um “pouco” acelerado. Expliquei que a voz dos atores estava distorcida mas para ele “isso não tem problema porque é filme nacional”. Agradeci à forma como o cinema de Lajeado apresentava um filme feito em Lajeado ao povo de Lajeado, e eles disseram que a culpa não era deles, era de Porto Alegre. Mas a culpa não é de ninguém. A culpa nunca é de ninguém.

E o filme segue em cartaz, na sala 01- a sala do projetor acelerado. O filme vai passar bem mais rápido do que ele deveria passar e talvez você não se importe que Bob Dylan tenha a voz do Pato Donald. Nem que os movimentos dos atores remetam a Charles Chaplin. As pessoas de ontem pareceram não se importar, mas, em Lajeado, para quem entende da coisa, é sempre melhor esperar em DVD.

PASSANDO O SERVIÇO DAS NOSSAS VIDAS – SE EU QUISESSE MESMO QUE VOCÊ FOSSE, INSISTIRIA UM POUCO MAIS

4 maio

No rádio toca “it ain’t me babe”, a musica das minhas obsessões presentes. Não a letra, o ritmo. Passo horas repetindo a mesma sequencia de movimentos no violão até que alguma coisa comece a acontecer. Alguma coisa minimamente próxima do original. Dizem que saber tocar como no original é sinal de que a mão direita está evoluindo. É bom exercitar o lado esquerdo do corpo. Exercitar a musica no estado mais perto do real de forma instintiva. A minha direita contem menos instinto do que a esquerda.

As malas voltam a fazer parte das nossas vidas e quando você diz que tocar bem é tocar o mais próximo do original, talvez isso não se aplique a ele. No “Crônicas” ele fala que precisou voltar para uma paisagem no meio do nada, para conseguir continuar a gravação de um disco. Contava ele que quando estava de volta, finalmente encontrou o rumo da gravação.

Levarei apenas o indispensável na vida para longe de casa, dentro de onde nasci. Roupas para o frio – a previsão é ciclone no litoral. Espero que o vôo seja tranqüilo. Me agarro às probabilidades para tentar acreditar que nada acontecerá. Seria mais simples se culpássemos os aviões pela nossa incapacidade de compreender que todas as coisas contem distancias.

Nessa quinta, dia 06, vou lançar o livro e o filme em lajeado e é bem estranho apresentar lá uma coisa que nasceu lá. Naquele cinema de shopping de beira de estrada. Quando eu era criança sentia pena dos que moravam próximos demais às estradas. Pensava que eles viviam tristes o dia inteiro, todos os dias. As casas na beira da estrada contem ruídos que, para ouvidos infantis, talvez sejam insuportáveis.

Na mesma quinta, dia 06, na mesma cidade de Lajeado, a Fran Spohr vai lançar a sua primeira individual na Univates. Uma série de nove impressões sobre colagens de objetos pessoais da artista. Não sei como ficou o nome final, mas lembro que seria algo como “fantasmas da casa”. vi algumas provas em escala menor e fiquei bem impressionado.

Eu juro que nada foi planejado.